No mesmo dia em que a Comissão Permanente de Direitos Humanos (PCHR) tinha 45 anos, o regime de Daniel Ortega a eliminou legalmente. É uma virada cruel da história, porque esta organização nasceu em 20 de abril de 1977 defendendo, entre outros, comandantes sandinistas que na época lutavam para derrubar o ditador Anastasio Somoza.
José Esteban González, o falecido fundador do CPDH, relatou em entrevista ao jornal La Prensa que um dos primeiros casos que a organização assumiu foi a defesa do comandante sandinista Tomás Borge, um dos principais líderes da Frente Sandinista, preso nas prisões de o regime de Somoza. “O que pedimos foi que eles tivessem um julgamento público, justo e com o direito de se defenderem, não de serem torturados”, explicou González.
Na quarta-feira, a Assembleia Nacional, controlada pelo regime de Ortega, cancelou o status legal de 25 organizações não governamentais, incluindo o CPDH, a última organização de direitos humanos legalmente estabelecida na Nicarágua.
Marcos Carmona, diretor executivo da PCHR, disse em entrevista coletiva que a organização continuará trabalhando pelos direitos humanos, talvez com outro nome, “porque a personalidade jurídica não é necessária para defender os direitos humanos”.
“As alegações que eles estão fazendo é que não cumprimos a entrega dos relatórios financeiros. Deixamos claro em muitas ocasiões que estávamos presentes perante o Ministério do Interior apresentando esses relatórios financeiros auditados e nunca houve vontade de receber esses relatórios”, disse Carmona.
“Com isso, o que vemos claramente é que não há vontade por parte do Governo de que existam organizações de direitos humanos que estão documentando os abusos que estão sendo cometidos em nosso país”, acrescentou.
A “morte legal” da PCHR ocorre em um contexto de repressão contra os defensores dos direitos humanos. Gonzalo Carrión é um deles. Até 2019, Carrión era o diretor jurídico do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (CENIDH) e por quase 30 anos defendia os direitos daqueles que participaram de protestos sociais na Nicarágua.
Em 30 de dezembro de 2018, Carrión cruzou ilegalmente a fronteira sul da Nicarágua para chegar à Costa Rica e evitar ser capturado ou morto, em uma onda de perseguição desencadeada pelo regime de Ortega contra defensores dos direitos humanos. A Direção de Assistência Judiciária da Polícia disse-lhe para participar do incêndio de uma casa no bairro Carlos Marx, em Manágua, onde seis pessoas, incluindo duas crianças, foram mortas por carbonização.
“Fui endossado pelo envolvimento de um crime contra a humanidade cometido pelas forças policiais e paramilitares”, diz ele de seu exílio.
No sábado, 16 de junho de 2018, seis membros da família Pavón Muñoz foram queimados até a morte quando encapuzados e acompanhados por policiais, segundo depoimentos de parentes sobreviventes, incendiaram a casa no bairro de Carlos Marx, onde também funcionava uma fábrica de colchões. Gonzalo Carrión foi um dos primeiros a chegar ao local da tragédia e sua presença foi usada pelo regime para responsabilizá-lo pelo crime brutal. “Eu não tinha muitas opções. Era a prisão, o exílio ou o cemitério”, acrescenta.
Carrión lembra que o processo de desmantelamento das organizações de direitos humanos começou a partir do momento em que Daniel Ortega voltou ao poder, em janeiro de 2007. “Eles vêm fechando espaços desde o início, mas nos últimos quatro anos seguiram uma política de terra arrasada contra os defensores dos direitos humanos”, diz.
Dezenas de defensores de direitos humanos buscaram refúgio no exílio, outros foram presos e muitos permaneceram trabalhando na Nicarágua sob ameaças e cerco, em condições clandestinas, explica Carrión.
Desde os protestos de 2018, uma ofensiva começou a eliminar legalmente as organizações de direitos humanos. Começou em 12 de dezembro de 2018, quando o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (CENIDH) foi fechado e confiscado, e terminou nesta quarta-feira, 20 de abril, com a última organização legal remanescente, a Comissão Permanente de Direitos Humanos.
A funcionária do CPDH, María Oviedo, foi detida em julho do ano passado e permanece em condições de tortura e isolamento na prisão conhecida como El Chipote, onde a maioria dos presos políticos do regime estão detidos desde maio de 2021.
Pablo Cuevas, outro funcionário do CPDH, deixou abruptamente a Nicarágua com toda a família em 8 de março porque disse sentir que sua vida estava em perigo. “Fomos para o subsolo. Não tenho dinheiro, mas tenho muitos amigos e eles me ajudaram. Há pessoas que se colocam em risco por mim, porque se tivessem me pego certamente estariam em risco”, explicou Pablo Cuevas durante o programa 100% Entrevistas.
“Eu sabia que havia uma ordem para me prender ou me matar”, diz Cuevas, que este mês cruzou o Rio Bravo, na fronteira com o México, para chegar aos Estados Unidos onde está buscando asilo político.
“A situação dos direitos humanos na Nicarágua está no pior cenário imaginável”, diz Gonzalo Carrión, que, juntamente com outros colegas, fundou uma nova organização de defesa dos direitos humanos na Costa Rica que trabalha para a Nicarágua desde o exílio chamada “Nunca Mais”.
Carrión, que defende os direitos humanos há 30 anos, lembra que desde 1990, quando Daniel Ortega perdeu o poder até 2006, quando o recuperou, os governos da época “também violaram os direitos humanos”, mas observa que quando os sandinistas exigiram organizações de direitos da oposição, muitas vezes violentamente os seres humanos os protegiam e “esses governos neoliberais” permitiram que chegassem às galerias da prisão conhecida como El Chipote para verificar o status dos detidos, algo impensável no regime de Ortega.
A ironia, acrescenta Carrión, é que aqueles que hoje perseguem organizações de direitos humanos costumavam procurá-las para obter ajuda. “Eles nos chamaram para interceder por eles quando estavam na prisão ou sob pressão. Naquela época, fomos descritos como esquerdistas por ajudá-los e agora eles nos dizem que somos agentes do império por ajudar aqueles que eles perseguem”.
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