Bukele aprofunda a crise democrática em seu país para perseguir as gangues com as quais concordou

El Salvador viveu um dos dias mais violentos do sábado desde que o número diário de homicídios foi registrado. Para enfrentar a violência, o presidente e seus deputados colocaram o país sob regime de emergência

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El Salvador's President Nayib Bukele speaks during a ceremony to inaugurate the expansion of the San Oscar Arnulfo Romero y Galdamez International Airport, in San Luis Talpa, El Salvador February 8, 2022. REUTERS/Jose Cabezas
El Salvador's President Nayib Bukele speaks during a ceremony to inaugurate the expansion of the San Oscar Arnulfo Romero y Galdamez International Airport, in San Luis Talpa, El Salvador February 8, 2022. REUTERS/Jose Cabezas

Assembleia Legislativa de El Salvador, controlada pelo presidente Nayib Bukele, decretou estado de emergência em torno Às 3:00 da manhã de domingo, solicitado pelo presidente para, supostamente, combater uma escalada nos assassinatos que deixaram 62 corpos em as ruas do país no sábado, 26 de março.

Com isso, a lei permite que o Executivo suspenda por 30 dias os direitos constitucionais de livre associação, para acessar um advogado de defesa, para ser levado perante um juiz dentro de um prazo não superior a 72 horas, e permite que o governo intervenha sem uma ordem judicial e-mails e comunicações. Tudo isso em um país cujos órgãos estatais e instituições de controle Bukele administra sem restrições desde 1º de maio de 2021, quando seu partido conquistou a supermaioria no Legislativo.

O estado de emergência, dizem propaganda oficial, o procurador-geral nomeado por Bukele e o próprio presidente, servirá ao Executivo para “caçar” as estruturas das gangues MS13 e Barrio 18 às quais a maioria dos assassinatos de sábado são atribuídos — e cujos membros estão entre a maioria dos vítimas - mas também para quem o governo entende que as financia e apoia.

A maioria dos mortos, de acordo com oficiais da Polícia Nacional Civil que vazaram informações sobre o aumento de homicídios ao meio-dia de sábado, eram membros das gangues. Quando o contador registrou 29 assassinatos, 19 mortos eram de MS13 e um do Barrio 18 Sureños; o resto, de acordo com o relatório, não tinha afiliação.

No final do dia, o recorde fechou com 62 homicídios, bem acima dos 20 registrados em 2014, quando El Salvador vivia um dos anos mais violentos do pós-guerra, encerrado em 1992 por um acordo de paz.

Às 18h30 de sábado, Bukele postou sua primeira explicação sobre o massacre em sua conta no Facebook. Depois de algumas linhas de complacência destacando a intensidade de sua luta contra as várias crises que enfrentou - pandemia, situação econômica mundial - a escrita assume um tom vitimista para recuperar “poderes” que “veem El Salvador como uma ameaça”, em referência ao governo e ao Congresso dos Estados Unidos, que agiram contra salvadorenhos funcionários acusados de corrupção e pediram para monitorar a aventura de Bukele com o Bitcoin.

Somente após essa introdução o presidente escreveu: “Temos um novo aumento nos homicídios, algo que trabalhamos tanto para reduzir. Enquanto lutamos contra criminosos nas ruas, tentamos decifrar o que está acontecendo e quem está por trás disso, financiou isso.”

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O Congresso de El Salvador aprovou o estado de emergência a pedido de Nayib Bukele (REUTERS/Jessica Orellana)

Essas últimas palavras são importantes; elas avançam a narrativa previsível do governo diante da escalada de homicídios e das ações que o bukelismo tomará sob a proteção do estado de emergência: culpar alguma força negra, previsivelmente figuras da oposição e jornalistas, pelo que está acontecendo em no meio de tudo isso, para não falar sobre o que vem acontecendo costumava estar por trás desses aumentos abruptos nos números de homicídios, que é o pacto que Nayib Bukele tem tido com as duas gangues desde que começou seu governo e mesmo antes, quando era prefeito de San Salvador.

Para fechar sua mensagem no Facebook, Bukele recorreu a outro de seus truques retóricos, o de se investir com divindade.

“Devo agradecer a Deus por me permitir enfrentar esses desafios inimagináveis; por me dar essa enorme responsabilidade e por ter me escolhido para ser seu soldado especificamente nestes tempos”, escreveu o presidente. Há um antecedente dessa linguagem: em 9 de fevereiro de 2020, quando invadiu a Assembleia Legislativa, cujos deputados então não controlavam, para pedir um empréstimo, Bukele sentou-se na cadeira que pertence ao presidente do Congresso para dizer que Deus havia falado com ele.

Às 22h04, por meio de sua conta no Twitter, Bukele pediu para decretar o regime de emergência. Poucos minutos depois, Ernesto Castro, presidente da Assembleia Legislativa, convocou uma sessão plenária para o fazer. Paralelamente, na rua, a Polícia Nacional Civil e o Exército realizaram buscas e buscas em bares e restaurantes do país que contas de mídia social relacionadas ao governo eram responsáveis por tornar públicas. O partido no poder até criou a hashtag para a ocasião: #Guerracontralaspandillas.

Na madrugada de domingo, 27 de março, os deputados de Bukele haviam dado ao presidente as ferramentas legais para prender quem seu regime decidir, negar o direito à defesa e os limites constitucionais da prisão preventiva, e tornar oficial algo que organizações internacionais, opositores e jornalistas suspeitam que o governo já está fazendo sem sanção legal: espionando suas comunicações telefônicas.

Marcela Galeas, advogada criminalista e crítica da política de segurança do governo, foi uma das primeiras a alertar para a possível ilegalidade do regime emergencial. “Ele deve atender a certos requisitos para ser invocado e decretado, os homicídios não devem ser usados como justificativa a ser aplicada em resposta à ineficácia do governo na área de segurança e como um meio de usar os recursos de forma discricionária.”

Os deputados bukelitas fecharam com uma selfie que os mostrava sorrindo depois, segundo o que alguns deles publicaram, “cumprindo” o país e o presidente.

Em nenhum momento, durante a implantação oficial, houve alguma referência ao pacto de gangues.

Homicídio El Salvador
Aumento da taxa de homicídios de El Salvador

Perseguindo membros de gangues ou oponentes?

Há uma contradição de origem em tudo isso: o mesmo presidente que pede um regime de emergência para enfrentar a violência desenfreada de gangues é quem se gaba do fato de seu governo ter sido o mais bem-sucedido na redução de homicídios graças ao chamado Plano de Controle Territorial, algo que vários acadêmicos, estudos, investigações jornalísticas e os mesmos aumentos nas mortes de gangues negaram.

Por trás da queda dos homicídios está um pacto do governo Bukele com as duas gangues mais importantes do país e da América Central, MS13 e Barrio 18. O próprio governo dos EUA, através de seu Departamento de Justiça, oficializou a certeza de que pelo menos dois funcionários de Bukele, Osiris Luna e Carlos Marroquín, agiram em nome do presidente para garantir esse pacto.

Além de Luna, o chefe das prisões, e Marroquín, funcionário da Casa Presidencial, têm sido essenciais para manter o acordo magistrados do Supremo Tribunal de Justiça e do procurador-geral da república ilegalmente nomeado pelos deputados bukelitas em 1º de maio passado.

Os magistrados do tribunal pararam indefinidamente a extradição de pelo menos três dos 14 líderes do MS13 que os Estados Unidos exigem para crimes que vão desde homicídio a terrorismo. E Rodolfo Delgado, procurador-geral de Bukele, pediu diretamente para não extraditar Eliú Melgar Diaz, vulgo Blue, um dos esses líderes. Um dos argumentos de Delgado é que não há garantia de que a justiça americana respeitará os direitos básicos da Blue.

Ontem, esse mesmo procurador-geral anunciou uma “caçada” em resposta ao tuíte em que o presidente Bukele, seu chefe para todos os fins práticos, solicitou o estado de emergência. Delgado, conforme relatado pela Infobae, era funcionário de uma empresa suspeita de lavagem de dinheiro que fazia empréstimos pessoais a Bukele e foi acusado de torturar prisioneiros.

O que não está claro, então, é quem será caçado pelo procurador-geral que pediu para não extraditar um dos líderes de uma das gangues que deveria estar por trás do massacre no sábado, 26 de março.

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Os EUA sancionaram dois funcionários do governo Bukele por laços com Mara Salvatrucha (AP)

O partido no poder já divulgou algumas pistas de que essa “caçada” pode incluir opositores e jornalistas críticos ao governo.

Diante das primeiras perguntas sobre a relação entre o pacto de gangues e o aumento dos homicídios, Bukele acusou aqueles que o questionaram de defender os membros da gangue. Imediatamente, Ernesto Castro, o presidente do Legislativo, alertou: “Os padrinhos e amigos dos terroristas já foram ativados. Vamos correr para o cerco (expressão salvadorenha para dizer que vamos agir com firmeza)!”

Na mesma linha, o vice-presidente Felix Ulloa escreveu: “Quem pode se opor a essas medidas? Eles virão à tona.”

De sua conta no Twitter, Bukele reproduziu mensagens de ódio contra mulheres advogadas que haviam alertado sobre a ilegalidade do regime de emergência, que criticavam o pacto de gangues. Uma dessas mensagens diz: “Espero que esse regime de emergência seja o alvejante que deixou a bandeira de El Salvador imaculada”.

Em particular, pelo menos duas embaixadas, uma europeia e uma americana, alertaram ontem os seus cidadãos para estarem extremamente preocupados com a violência criminosa e política que, consideraram, pode aumentar nas próximas horas.

Um funcionário executivo consultado pela Infobae, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, disse que era previsível que parte da ação judicial fosse dirigida àqueles que acusassem o governo de financiar ou defender membros de gangues.

Tudo isso ocorre em um momento em que Bukele enfrenta uma possibilidade real de não pagamento da dívida do país depois de não conseguir mais empréstimos multilaterais e atrasar a emissão do chamado título Bitcoin, que o governo havia vendido como fonte alternativa de financiamento. Diante disso, o presidente já anunciou uma reforma do sistema previdenciário, uma medida impopular pela qual, pelo menos enquanto houver um regime de emergência, ninguém poderá protestar sem correr o risco de ir a uma das prisões de Bukele, aquela em que seu acordo com as quadrilhas foi criado.

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