Hoje a família de Mafalda seria pobre

A metáfora escolhida pelo diretor do Observatório da Dívida Social da UCA dispara no coração simbólico da classe média, em uma realidade em que é cada vez mais difícil sobreviver ao grupo social que representava os sonhos de progresso e mobilidade social.

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“Hoje, a família de Mafalda nos anos 60 seria pobre.” A metáfora escolhida pelo diretor do Observatório da Dívida Social da UCA dispara no coração simbólico da classe média em uma realidade em que é cada vez mais difícil sobreviver ao grupo social que representava os sonhos de progresso e mobilidade social que descreviam amplamente a sociedade argentina. Sonhos de progresso que, estranhamente, apesar do declínio e do declínio econômico, sustentam uma ideologia e continuam a delinear uma identidade.

O analista de consumo Guillermo Olivetto costuma explicar que mais de 80% dos argentinos se percebem como classe média, embora tecnicamente muitos não o sejam, porque é precisamente uma imaginação compartilhada. Como se fosse, ao invés de um estrato social acessado por nível de renda, uma escolha de vida, indissolúvel em ser argentino. Nisso 80% podem até caber aqueles que estão acima ou abaixo da pirâmide social de acordo com o que ganham.

O crescimento da pobreza no contexto de políticas que parecem determinadas a multiplicá-la e manter os pobres pobres pobres, dependentes de subsídios e sem autonomia, tem sua pior face no percentual de crianças que vivem na pobreza, que ultrapassam 60% na faixa etária que atinge os 14 anos. É impossível não contar entre eles as muitas famílias que caíram da classe média punida com a qual a atual administração parece estar arruinada, sabendo que não é o setor que mais as vota.

Entre os filhos dos chamados novos pobres, pode-se contar Mafalda de acordo com a análise de Agustín Salvia, ao considerar o que ele chama de pobreza estrutural. “Temos escalado 5 pontos de pobreza estrutural a cada 5 anos. Hoje estamos pairando em torno de um piso de 40% com um teto de 45%.”

A realidade impossivelmente confunde o contexto daquele desenho animado em que uma garota ansiosa por progredir na vida era a heroína da classe média interpretando suas demandas e motivações. Talvez ela tenha sido a primeira garota empoderada nos anos 60: moderna, determinada e intelectual. Ele sabia que, quando cresceu, tinha um mundo ao alcance de seus esforços. Hoje, mais de 60% das crianças no país que lêem seus quadrinhos se sentiriam fora desse mundo por causa de seu sofrimento. E pior, hoje, Mafalda poderia estar entre eles, ao ar livre daqueles que nem terminam o ensino médio, ou aqueles que aos milhares optam por deixar o país.

Um relatório recente da consultoria Ecolatina alertou que 1 em cada 3 famílias de classe média são consideradas pobres. A pobreza é estipulada em sintonia com o aumento dos preços que pulveriza o poder de compra, fenômeno que continuou a piorar nestes meses, caindo com força total nos setores que tentaram se sustentar nos últimos passos daquela classe média empobrecida. Para não ser pobre, no mês passado, uma família precisava de 83.807 pesos e para evitar ser destituída 37.413 pesos, sendo o salário mínimo ainda menor que o nível determinado pela indigência.

E aqui surge a pergunta mais perturbadora: poderia ser a própria Mafalda no contexto atual?

Infobae
O presidente Alberto Fernández declarou guerra à inflação e os preços subiram (EFE)

Para muito mais famílias, o precipício da pobreza paira na conta cada vez mais inatingível do supermercado, e as frustrações com as estradas que estão fechadas estão mais presentes do que as perspectivas para o futuro.

Aquela garota determinada que chegou a referir sua compreensão do mundo pedindo paz em meio à Guerra Fria, hoje, nesta Argentina investida, correria o risco de fazer parte de uma primeira geração de pessoas pobres em famílias de tradição da classe média. “Salve Mafalda”, pode ser a declaração que nos convoca. Não parece coincidência que a mitologia de uma vida melhor, incorporada nos sonhos de ser classe média, tenha uma menina como figura arquetípica, porque a classe média é, por definição, o motor e o veículo do futuro.

O fenômeno da inflação, com uma aceleração que não se via há décadas, condena os argentinos hoje a um hiper-presente de fragilidade insuportável. A realidade piora em movimento rápido e a soma das incertezas pode ser resumida no preço do pão. O futuro se torna um campo de angústia e balbucio incertos.

Quando o presidente sai como um bobo da corte para declarar guerras já perdidas, agravando com sua imprudência discursiva até os preços de amanhã, quando do poder lutas ferozes estão cada vez mais divorciadas da realidade, quando os ventos disputadores sopram na própria coalizão governista, parece sincero fingir Esticar as pretensões do futuro em um reflexo do dia. Talvez pareça um desafio, mas é um desafio essencial, o grito de “Faça algo a sério”.

Não só as prateleiras estão esvaziadas de produtos devido à escassez que conseguiram produzir com sua ineficácia econômica, mas também de uma noção mínima do horizonte imediato. Você poderia dizer a mesma coisa que aquele desenho animado de Quino em que Mafalda é vista de costas para um globo no qual é afixada uma placa que diz: “Tenha cuidado! Trabalho irresponsável”. Ou apelar para aquele outro quadrinho, em que Mafalda aparece com olhos tristes e um band-aid na mão para se perguntar: “Como alguém coloca isso em sua alma?”

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