O nosso é um país cheio de contradições, algumas delas muito graves, como a que este artigo é dedicado. É claro que a principal contradição está na comparação entre o que poderíamos ser (por causa de nossa riqueza natural, posição geográfica, ativos educacionais e culturais) e o que somos, ou melhor, entre nossa situação potencial e nossa situação real.
Mas queremos dedicar esses parágrafos à questão da descriminalização do aborto (lei 27610), que, na realidade, não é apenas descriminalização, mas também promoção oficial da prática do aborto.
Vejamos as contradições. Por decreto 1406 de 1998, que permanece em vigor, a República Argentina declarou 25 de março de cada ano como “Dia do Nascituro” (art. 1), seguindo a antiga expressão “nasciturus” que a lei romana costumava designar o ser humano desde o momento da concepção até o nascimento. Isso se refletiu em nosso histórico Código Civil, redigido por Vélez Sarfield, em vigor até 2015: “Os nascituros são aqueles que não nasceram são concebidos no ventre materno” (art. 63). O atual Código Civil e Comercial reitera a mesma ideia: “Início da existência. A existência da pessoa humana começa com a concepção” (art. 19), uma declaração que também importa uma ratificação dos fundamentos do decreto 1406/98, e de toda a tradição jurídica do nosso país.
Voltemos então ao decreto 1406/98. Sua fundação — da instituição do Dia do Nascituro e, portanto, da condição humana do “nasciturus” — começa por recordar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) e a Carta das Nações Unidas sobre “a dignidade e o valor da pessoa humana e... a direitos iguais de toda a humanidade”. Refere-se também a várias normas internacionais destinadas à proteção das “crianças”, em particular a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU), já declarada hierarquia constitucional na reforma constitucional de 1994, citando o Preâmbulo dessa Convenção: “A criança, por causa de sua falta de maturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, incluindo a devida proteção legal, tanto antes quanto após o nascimento”. Insisto que este texto, qualquer que seja seu valor normativo, é um critério constitucional para a interpretação da Convenção, tanto que sua lei que aprova a Argentina (Lei 23849) declarou que, para os fins da Convenção, “uma criança é entendida como todo ser humano desde o momento da concepção. até a idade de dezoito (18) anos”, uma norma que foi declarada obrigatória em relação a qualquer medida estatal que seja “adotada em relação a pessoas até a idade de dezoito anos” (art. 1º, lei 26061, “Sobre a Proteção Integral dos Direitos da Criança e do Adolescente”). Obviamente, para a consideração do status legal de uma “pessoa humana”, devemos recorrer ao Código Civil, cujo artigo 19, como vimos, afirma que essa personalidade é reconhecida desde o próprio momento da concepção.
Os “considerandos” do decreto 1406/98 continuam a dizer: “Que a qualidade de uma pessoa, como entidade capaz de adquirir direitos e obrigações contratuais, deriva de uma exigência constitucional e para nossa Constituição e Legislação Civil e Penal, a vida começa no momento da concepção”.
Insistimos que todas essas regras estão, até hoje, em pleno vigor. Já vimos o que o art. 19 do novo Código Civil afirma. Mesmo a descriminalização prevista pela Lei 27610, que não é para todos os casos, mantém o aborto dentro da qualificação de “Crimes contra a vida”. Contra a vida de quem? Do nasciturus, obviamente. O importante é que o legislador criminal colocou a proteção da vida do nascituro no mesmo “Título I”, “Crime contra pessoas”, “Capítulo I” “Crimes contra a vida”, criminalizando o aborto imediatamente após o crime de homicídio. Depois de admitir que o nascituro e o nascido são portadores da mesma propriedade criminalmente protegida (vida humana), o legislador da lei do aborto, no novo art. 86 excluiu a vida do nascituro da proteção criminal em todos os casos até a 14ª semana de gravidez materna (o legislador em vez de mãe usou a expressão “pessoa grávida” e em vez de gravidez a de “processo gestacional”, provavelmente por causa da repulsa causada por aqueles termos tradicionais e amados (mãe, gravidez) que nos lembram o valor precioso da mulher e da vida).
Assim, nosso país reconhece a humanidade do nascituro durante todo o período pré-natal, mas legaliza sua morte durante as primeiras 14 semanas de sua vida, sem qualquer causa: durante esse período, não importa a idade ou a saúde da mãe, nem se a gravidez resultou de estupro. Esses motivos, por outro lado, serão importantes no caso de abortos após 14 semanas, mas com uma avaliação de uma “manga larga” que, na prática (basta a mera declaração de ter sido estuprada há nove meses) o aborto pode ser realizado quase até a conclusão, desmembrando a criança e/ou sugando o cérebro, para facilitar sua separação da mãe, já morta (caso contrário, teríamos infanticídio).
Deve-se notar que a lei do aborto não revoga o artigo 19 do Código Civil, nem contradiz a lei 23849, nem os contradiz, no sentido estrito do termo. Simplesmente autoriza matar (tirar a vida, cancelar a vida, extinguir a vida) um ser que o resto do sistema jurídico considera uma pessoa humana, ou seja, um ser humano. É como se fosse aprovada uma lei que previa. “Não é crime matar a pessoa de um recém-nascido até a 14ª semana do nascimento, com o consentimento da pessoa que deu à luz (para não usar o termo “mãe”, agravando os sentimentos 'progressistas')...”. Tal regra - que como veremos já está em andamento em alguns países - não estaria contradizendo a humanidade do recém-nascido, seria simplesmente descriminalizar um certo fato. É claro que teríamos uma violação grave de nossas obrigações com o sistema internacional de direitos humanos, mas o mesmo vale para o caso da lei do aborto, que viola os termos sob os quais a Argentina se comprometeu a respeitar a vida da criança.
Ao contrário do argumento, não valeria a pena argumentar que o mesmo é verdade em outros sistemas jurídicos. Isso é exatamente o que não está acontecendo. Vejamos alguns exemplos, onde o aborto livre, por mais repugnante que seja em relação ao direito humano à vida, não é disfuncional — digamos “esperpêntico” — no que diz respeito à ordem interna:
-Espanha: “A personalidade é adquirida no momento do nascimento viva, uma vez que ocorreu o desapego completo do útero materno” (art. 30 CC) para que o aborto não matasse uma pessoa humana (do ponto de vista jurídico, se o fizer da realidade biológica).
-Itália: “A capacidade jurídica é adquirida no momento do nascimento” (art. 1, CCC)
-França: não define quando a personalidade humana começa, embora na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, ao contrário da Argentina, tenha declarado que se é criança desde o nascimento.
No nosso caso, como vimos, a disfuncionalidade é evidente.
É verdade que o artigo 21 do nosso Código Civil e Comercial prescreve que “Os direitos e obrigações das mulheres concebidas ou implantadas são irrevogavelmente adquiridos se nascerem vivas”, mas esta disposição se refere a casos de aborto espontâneo e não ao aborto induzido. A interpretação oposta, além de agravar o senso comum, importaria até autorizar o aborto para que, por exemplo, a “gestante” não compartilhasse com a criança (cuja vida “interrompe”) a herança do marido e do pai que morreram após a concepção e antes do nascimento. Mas o argumento mais importante reside no fato de que, reconhecido por nossa legislação (e pela Constituição e convenções internacionais como foram elevadas à hierarquia constitucional) a personalidade humana do nascituro, desde sua concepção, o direito à vida não é “adquirido”, mas simplesmente considerou o próprio fato da humanidade: é o mais fundamental, essencial e intrínseco dos direitos. Com base na vida, outros direitos podem ser adquiridos, sem vida nenhum direito é adquirido (após a morte), então a vida não é adquirida (não tem orçamento ou base anterior), mas é possuída, e a vida humana é possuída, uma vez que existe a pessoa humana concreta e individual.
As considerações acima mostram o, para o nosso sistema, as inconsequências e inconsistências legais da lei do aborto, mas o choque é notavelmente pior da realidade biológica do futuro.
Tal é o fanatismo ideológico de que o aborto sofre que até os leva a ignorar os dados fornecidos pela ciência médica. Desde o momento da concepção, o nascituro desfruta de seu DNA humano, pessoal, individual, que o acompanhará e o identificará individualmente, até sua morte. Desde a sexta semana ela teve um batimento cardíaco audível, o que levou alguma legislação a proibir o aborto desde aquela época, como aconteceu em 11 de março no estado do Texas. No entanto, a circulação sanguínea começa antes de ser audível. As “ondas peristálticas” (movimento) do coração em formação ocorrem no dia 22 de gestação e no início da circulação sanguínea no dia 25.
Mas o abortismo é indiferente a esses fatos da realidade; assim, eles criticam a legislação que proíbe o aborto sem causa ao ouvir os batimentos cardíacos do nasciturus, porque dificulta a prática do aborto, sem parar para considerar se tal medida não é positiva diante do universal requisito para proteção da vida humana.
Além disso, alguns legisladores do estado de Maryland decidiram escalar o horror da prática, em antecipação a uma possível reversão iminente da decisão “Roe vs. Wade” que levou à legalização do aborto nos Estados Unidos em 1973. Assim, em 4 de fevereiro, apresentaram um projeto de lei (SB669) que busca proibir investigações e/ou ações penais para mães e profissionais de saúde diante de uma “omissão” em relação a um óbito “perinatal”. A medicina define o período “perinatal” (usado maliciosamente no projeto) que decorre entre a 20ª semana de gravidez e 1 a 4 semanas após o nascimento (termo ambíguo). Assim, um bebê nascido doente ou saudável, poderia ser abandonado e deixado para morrer até potencialmente 28 dias após o nascimento, sem punir aqueles que participaram desse filicídio e infanticídio.
No dia 25 de março, celebraremos o “Dia do Nascituro”, que também é uma afirmação, nestes tempos de guerra, do valor sagrado de toda a vida humana.
Rodolfo Barra foi juiz do Supremo Tribunal de Justiça
Fernando Secin é urologista , oncologista e professor
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