Malvinas: “Campo minado” voltou ao teatro de Buenos Aires nos dias anteriores a uma data histórica

A obra de Lola Arias, que reúne as histórias de 6 ex-combatentes da guerra de 1982, foi estreada novamente no Teatro San Martín em uma função especial com a presença de funcionários de Buenos Aires e do embaixador do Reino Unido, entre outras personalidades

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Em apenas duas semanas, serão 40 anos desde 2 de abril de 1982, um dia que fundou sentimentos tão confusos quanto exorbitantes. As Malvinas e a guerra trouxeram alguma euforia e muitos medos. Até medos íntimos e nunca imaginados. Como seria ter que ir para a guerra e o que poderia acontecer nas Malvinas, muitos de nós pensamos que, como esse cronista, tínhamos terminado recentemente o serviço militar e éramos reservistas capazes de ser convocados.

“Minefield”, a peça de Lola Arias que será exibida de quinta a domingo às 20h, até 24 de abril, teve sua estreia em maio de 2016 no Royal Court Theatre em Londres e desde então já se apresentou em mais de 30 cidades ao redor do mundo. Agora no Salão Martín Coronado do Teatro San Martín, por ocasião do aniversário do início da Guerra das Malvinas.

A reestreia aconteceu na noite de quinta-feira e deu início a uma série de atividades que o Ministério da Cultura da Cidade de Buenos Aires realizará no âmbito desta comemoração. No salão central do Teatro San Martín, antes do início da apresentação, a Infobae Cultura conversou com o Ministro Enrique Avogadro e Jorge Telerman, Diretor Geral do Complexo Teatral de Buenos Aires e nomeado Diretor do Teatro Colón.

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

Avogadro explicou que “há toda uma série de atividades sendo organizadas pelo governo da Cidade de Buenos Aires em relação aos 40 anos de Malvinas, onde o Ministério da Cultura desempenha um papel muito ativo, porque entendemos que a cultura nos permite nos dar um espaço de reflexão. E uma visão que, como a proposta pela obra de Lola Arias, sem nunca abrir mão da reivindicação de soberania, coloca uma visão muito humanista, uma abordagem do conflito a partir de um humanismo transcendente. São os mesmos protagonistas de ambos os lados que contam sua história. Eles não tiram conclusões porque o valor da arte, eu acho, é que ela nos apresenta a pergunta e cada um elabora a resposta.”

Telerman também destacou aquela visão com a qual o Complexo Teatral concentrou as atividades. “Nossa vocação era organizar esta comemoração do 40º aniversário das Malvinas a partir de uma perspectiva humanista, para promover os valores da harmonia, da paz, com este empreendimento único em escala global. Não há precedentes em que três ex-combatentes, neste caso britânicos, e três ex-combatentes argentinos, estejam fazendo juntos uma obra de arte que nos comove a todos, mostrando a superioridade do valor do encontro, mesmo na diferença. Porque é por isso que fizemos o que fizemos para fazer essa comemoração, não para falar de questões geopolíticas, não apenas sobre uma posição clara de defesa da soberania, como todos nós temos, mas sobre uma perspectiva que nos permite refletir sobre a guerra. E, infelizmente, o mundo continua a nos mostrar como isso é impossível.”

Estreia de Minado Field

Os protagonistas de “Campo minado” são ex-combatentes. Três argentinos, dois britânicos e um nepalês, um dos gurkas enviados para as Malvinas como parte das tropas inglesas. Entre os argentinos, Rubén Otero sobreviveu ao naufrágio do navio General Belgrano e tem uma banda de tributo aos Beatles; Gabriel Sagastume era um soldado “medíocre” (em suas próprias palavras), e hoje é advogado criminal; Marcelo Vallejo era um morteiro e é atleta, campeão de triatlo. Os britânicos são David Jackson, que passou a guerra ouvindo transmissões de código no rádio e hoje ouve outros veteranos no consultório de seu psicólogo, e Lou Armour, que era capa dos jornais mundiais quando os argentinos o fizeram prisioneiro em 2 de abril, e hoje ele ensina crianças com dificuldades de aprendizagem. Sukrim Rai era um gurka que sabia como usar sua faca, mesmo para evitar matar, depois da guerra ele trabalhou como guarda de segurança. A proposta propõe olhar para a mesma história de diferentes pontos de vista, daqueles que eram inimigos e agora compartilham um cenário, mas também entre quem eram e quem são, bem como as diferentes formas de se relacionar com os militares como uma trajetória e com as Malvinas em particular. Lou Armour, que permaneceu ensinando na Inglaterra, não estará presente nessas funções. Ele será substituído por Tip Cullen, um ator que era fuzileiro naval e é conhecido na Grã-Bretanha por seu manuseio de armas, que ficará encarregado de contar a história de Armour.

Estreia de Minado Field
Presenças na reestreia de “Minefield”. Da esquerda para a direita: Felipe Miguel, Embaixador do Reino Unido Kirsty Hayes, Diretor do Conselho Britânico Robert Chatfield, Jorge Telerman, Eduardo Eurnekian e Enrique Avogadro (Gustavo Gavotti)

Junto com o relançamento da peça de Arias, foi inaugurado “Mantle of Neblinas”, uma instalação imersiva localizada no Salão Alfredo Alcón do Teatro San Martín. É um cubo enigmático que propõe uma experiência sensorial e convida à contemplação e à experiência empática. Telerman explicou a lógica desta criação com a ideia e o desenvolvimento de Natalia Uccello e Gabriel Caputo, e uma fotografia do terreno Malvinas de Gerardo Dell'Oro. “Às vezes esquecemos a dimensão do horror humano de uma guerra em que vidas, corpos, estão de fato em jogo. A instalação que veremos coloca isso em valor. Você vai entrar naquela instalação com as luzes apagadas, elas vão acender e uma ilusão de ótica lhe dará a sensação de ser você mesmo dentro das Malvinas. E então a luz vai se desligar novamente e ele vai perceber que ele não está lá, mas que ele poderia ter estado lá.” Por sua vez, o ministro Avogadro ressaltou que a instalação foi possível graças ao apoio da Corporación América, cujo proprietário Eduardo Eunekian esteve presente na abertura, e também ressaltou a importância de esta proposta ser desenvolvida, livre e gratuitamente, no carro-chefe do Complexo Teatral, o Teatro San Martín. “Um espaço que sempre foi central para a cultura da Cidade de Buenos Aires desde a sua fundação”, acrescentou o Ministro da Cultura de Buenos Aires.

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

Biografias e teatro documental

“Campo minado” faz parte do que é conhecido como teatro documental, uma forma de representação que inclui elementos de biografias e histórias pessoais com instâncias de ficção, mas sempre que surge de um processo de pesquisa realizado pela pessoa responsável pela organização dos textos e encenação . Não é uma mera história pessoal sem dramatização ou organização. Em nosso país, tem sua principal referência no ciclo Biodrama criado por Vivi Tellas, que ocorreu em 2002 e 2008.

O teatro biográfico/documental desenvolveu diferentes desvios, onde as interseções com a performance desenvolveram propostas muito importantes. Também foi enriquecido em muitos casos pela incorporação dos elementos centrais da cena atual, como o uso de audiovisuais, atores/intérpretes como músicos, o microfone como um elemento que destaca a idéia de contar histórias ou a ruptura permanente da quarta parede. Tudo isso está presente nesta proposta.

Este registro teatral é onde Lola Arias se destaca desde 2009, ano em que apresentou “My Life After”, em que seis jovens reconstroem a juventude de seus pais nos anos 70 usando fotos, cartas, cassetes e roupas usadas, entre outros elementos. A partir de então, ele produziu seus trabalhos na Alemanha, Áustria, Brasil, Chile, Inglaterra e Suíça. Seu trabalho foi apresentado em inúmeros festivais de teatro ao redor do mundo.

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

“Minefield” foi lançado em 2016 e nenhum de seus protagonistas são atores. No entanto, alguns deles deixaram seus empregos para poder assumir os compromissos que as turnês em quase todo o mundo exigiam. O que acontece com o protagonista de uma história, que não é ator, interpreta a mesma peça por quase 6 anos? Isso muda a maneira como você assume seu trabalho com o texto? Para Marcelo Vallejo “a mudança, apesar de não termos percebido, foi aos poucos. Foi encontrar um ritmo na maneira como nos movemos no palco e, no meu caso, na confiança de sentir que estou lá, em um palco, em um teatro. Mas nunca vou pensar que sou ator. Sou um veterano de guerra que está contando sua história. Houve mudanças, como essa em deixar surgirem alguns sentimentos que talvez por vergonha ou falta de confiança, não os deixamos fluir. Todas essas mudanças fazem o trabalho crescer, para que não perca o interesse que tinha no início. Para nós, sempre será o primeiro show, porque não falamos sobre nós, falamos sobre muitos de nossos colegas, sobre parentes, sobre mães”.

Para quem conhece o trabalho, não há dúvida de que ele mantém o que a essência do projeto trouxe: histórias honestas, na primeira pessoa, histórias que se encontram e produzem diálogos permanentes baseados na perplexidade que o contato com a morte e a dor continua a causar. Ao longo dos anos, os protagonistas encontraram possibilidades de ampliar seu registro expressivo e emocional, o que significa que, longe de ser automatizada, a representação de suas próprias histórias ganha sensibilidade e riqueza narrativa.

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

Arias permite a implantação de recursos muito interessantes, como a representação de Margaret Thatcher e Leopoldo Galtieri em paralelo através de seus discursos. Assim como as histórias dos combatentes funcionam como a construção de um coletivo longe desse grande poder, ambos funcionam como parte de um mundo comum, o do poder. Enquanto os ex-combatentes argentinos contam como foram escondidos e ignorados ao retornar, com a reconstrução do governo colonial nas Malvinas, no Reino Unido, Jackson explica em uma passagem da peça, o Thatcherismo começou: neoliberalismo, fechamento de fábricas, perda do poder sindical. Os soldados são, também em paralelo, o acampamento popular derrotado.

Um elemento-chave do trabalho é a música. Saber tocar instrumentos era uma pré-condição no elenco original. É interessante não apenas como um elemento de ruptura rítmica do uso do rock e pop, mas como uma pequena história cultural sobre o que é comum para nós. A primeira viagem de Otero a Londres foi com sua banda tributo aos Beatles. Naquela época, seu status como ex-combatente ficou em silêncio. Este momento é ficcionalizado através de uma versão magnífica de “Get back” tocada pelos 3 protagonistas mais argentinos de Jackson, que impressiona com sua guitarra. Quanto esse tópico nos identifica? Quanto o rock britânico se une ao rock argentino? Quantos traços culturais compartilhamos, especialmente aqueles que fomos formados a partir da década de 1960 em diante? Há uma sub-trama para pensar sobre esse trabalho e o lugar dos combatentes, desta e de muitas outras guerras, proposto pelo trabalho de Lola Arias.

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

O passado e o presente

Esta série de apresentações se destaca porque comemora 40 anos do conflito armado e isso certamente mobilizará tanto os protagonistas quanto o público. Nesse sentido, um dos protagonistas da obra, Marcelo Vallejo, explicou à Infobae Cultura o significado que representar a obra adquire para ele nesta data. “As circunstâncias serão diferentes porque há dias difíceis para mim, onde as memórias aparecem com mais força. Teremos atos diferentes e vamos nos reunir com meus companheiros de equipe, com os veteranos. E vão ser dias difíceis. Então, serão funções diferentes.” E sobre a situação que aconteceu na última quarta-feira às portas da sede do PAMI, ele enfatizou: “Não posso deixar de dizer que me sinto muito impotente e muita tristeza, porque estou em um teatro fazendo a peça e meus colegas veteranos de guerra estão na rua lutando por bons cuidados médicos, que ainda não tem 40 anos de guerra”.

O presente também nos coloca diante de uma guerra com consequências humanitárias chocantes. É difícil confrontar essa proposta sem pensar no conflito armado que está ocorrendo em território ucraniano. Para Vallejo, fazer o trabalho nesse contexto assume um significado muito especial e transmite “uma mensagem muito poderosa para as pessoas que vão ver o trabalho. Para nós, que passamos por essa experiência e que estamos sempre tentando dar a mensagem do que deixa para a guerra, não só no canteiro de obras, quando há conflito, não apenas na Ucrânia, onde quer que seja, nos perguntamos o que aconteceria se as pessoas soubessem o que era ouvir o apito de um projétil, uma bomba, um bala e toda a dor que ela gera. Eu sempre digo que não haveria guerra.”

Estreia de Minado Field
(Gustavo Gavotti)

A peça “Campo minado” é apresentada de quinta a domingo às 20h no Salão Martín Coronado do Teatro San Martín. A instalação “Manto de Neblinas” está aberta ao público de forma gratuita e gratuita no salão central do teatro, Avenida Corrientes 1530, Cidade de Buenos Aires.

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